Dona Otilia está aprendendo a tocar violão. Saem
agora as primeiras notas que o tempo já recebeu dos dedos dela. E é ao som das
notas inseguramente dispersas de Otilia que eu arrumei a minha mala para Paris.
(O relato sobre a minha viagem refletirá o
esforço de permanecer aquecida; com os dedos firmes e cortados, como os de
alunos que iniciam as aulas de violão. Assim fundou-se, do empurro dos dedos
ardentes numa e noutra corda; do calor das mãos; da concentração na beleza de
tudo; do positivismo certeiro: o som).
Contraí-me em um avião por
15 horas, longe, muito longe das ruas Heitor Penteado, Av. Francisco Morato e
Ermano Marchetti, onde estendo o cotidiano.
Ao empilhar as expectativas
que o meu olhar recolhia da janela do trem (que me levou do aeroporto ao hotel),
a respiração passava a fluir diferente. Como se pode supor pela época do ano, já
sentia a atmosfera úmida e apaixonante de Paris.
Na rua Volontaires deixei o
primeiro olhar surpreso e saciado de alcançar, pela primeira vez, uma rua que
só conhecia através dos desenhos nos livros de arquitetura. Ali, num quarto
pequeno e envolvente, deixei as bagagens e senti-me condenada à prisão domiciliar.
Uma sacada florida que cabia apenas uma pessoa, uma banheira branca que cabia
metade de mim. Tudo era feito para ser usado por pessoas pequenas e/ou solitárias. O inverno, porém, só para solitárias.
Noite ou outra chegava às
17horas e o sono chegava atrasado, muito depois. Naquele quarto escuro, despendi
alguns pensamentos longos e alguns soluços de saudade e de lembrar a justiça
infligida por tudo aquilo que impede tantas pessoas de não viverem Paris e a
sua arte, e o seu detalhe e a sua imensidão.
Durante o dia, a admiração
e a contemplação da beleza saltava a todos os sentimentos humanos em mim. Apesar
de curtos, os dias eram presas fatais aos seres sensíveis.
Me enchi de sentimentos na
famigerada Torre Eiffel, nos Arcos todos, nos Museus, nas igrejas góticas, nas
paisagens vistas do Sena e pisando naquelas calçadas, sentindo o cheiro da
batata de rua, jantando queijos e vinhos, sorrindo para a cantoria entre uma
linha e outra do metrô no início do dia, etc. Me enchi. Me enchi, porque é um
crime viver vazio em Paris.
Conheci senegaleses também.
Um deles, trocou os meus 20 euros por uma porção de presentes. Refugiados,
provavelmente - gritando coisas que eu não traduzia. Os refugiados aguardam
para preencher aquelas vagas vazias há anos, na sociedade francesa, reservadas
a pessoas com condições socioeconômicas melhores.
A minha angústia,
sobreposta ao meu romantismo, revelava uma reação muito longe do clichê. No dia
25 de dezembro despejei boa parte do que abastecia esse desânimo, em lágrimas.
As saudades não calam nem nos mais lindos lugares.
O desabafo é uma maneira de reciclar as emoções. Da
mesma forma, o reproduzi no dia 1 de janeiro, em meio às gargalhadas e às vozes
(muitas vozes!) confrontadas pelo pranto das crianças e mais gargalhadas. Eu
via olhares maliciosos e selvagens varrerem a paz entre mim e o meu namorado. As massas que tomavam conta das ruas ao redor da grandiosa Torre
(apagada) se configuravam nos monstros que já travestiram os meus sonhos.
Na França eu bebi, pensei,
aprendi, sorri, renunciei e compadeci. Na Champs-Elysées, uma das ruas mais
iluminadas que eu já vi, experimentei muitas fragrâncias de perfumes.
Quando já me despedia da
cidade de luz, eu percebi que andava de braço dado com alguém que minimizava os
meus cansaços e dividia comigo, silenciosamente, a minha solidão. Teria
preferido identificar antes, mas perdia meu tempo militando para quebrar as
nossas diferenças. Essas pessoas emergem entre nuvens e assim permanecem. Fui observadora,
autocrítica, consumidora de amenidades e
grandiosidades culturais. Tive feições finas e fechadas e não sei se compartilhei
os seus significados com o meu par.
Daí fez-se o som: Daí fez-se o depoimento: Não deixaria mais que
as indagações postergassem dentro de mim.